Macapá - Passei no começo da tarde de hoje em frente ao Palácio do Setentrião, sede do governo do Estado do Amapá. Tudo aparentando normalidade, salvo um banner assinado pelo Sindicato dos Rodoviários e fixado na grade frontal à esquerda; a ponta esquerda do banner se soltou. Mas fora isso nem sinal de agressão ao patrimônio público, nem reforço (ao menos visível) de vigilância do prédio, que ontem esteve no epicentro da radicalização de um ato que começou pacífico e acabou em conflito. A simples visão do leito da avenida FAB e a própria Praça da Bandeira, ambas ali próximas, também pouco lembravam os acontecimentos da véspera.
Para quem não sabe, tivemos aqui em Macapá neste dia 19 uma grande manifestação, intitulada Ato Plural e Democrático por Melhores Condições no Transporte Público do Amapá, que faz parte do grande ciclo de passeatas que acontecem pelo país neste mês de junho. Algumas capitais já estavam se manifestando há algum tempo, mas a questão tomou proporções nacionais após a especial truculência da Polícia Militar de São Paulo na noite de 13 de junho. A partir daí, surgiu em Macapá a iniciativa de também se somar a essa luta que se nacionalizou. A mobilização começou via Facebook e logo deu lugar a reuniões presenciais na própria Praça da Bandeira. Estive numa destas reuniões, na segunda, 17, quando chegou a haver um consenso sobre a permissão para o uso de bandeiras de partidos políticos durante a passeata da quarta, o que posteriormente foi modificado. Vi bandeiras, por exemplo, de associações de estudantes, mas de partidos, nenhuma. A única coisa mais partidária que vi foi um panfleto que um rapaz distribuía em meio à própria marcha, intitulado "Não ao Aumento das Passagens" e assinado pela "Intervenção Comunista", em cujo último parágrafo há uma exortação para trabalhar para construir o partido leninista.
A concentração na Praça na quarta estava marcada para as 16h, pouco depois desse horário comecei a me dirigir para lá, indo pela rua General Rondon. A uma quadra da praça, encontrei um grupo de jovens escrevendo seus cartazes - um deles, a moça da foto acima. Um dos rapazes pedia "Fora Feliciano" - ambos os temas, bem como os narizes de palhaço, foram recorrentes na manifestação. Seguimos juntos até a praça, onde me afastei deles procurando amigos com quem havia combinado de me encontrar, e só aí comecei a ter uma real dimensão da massa mobilizada. Já àquela hora, a praça da Bandeira reunia seguramente mais de 2 mil pessoas! Isso eu gostei de ver. O que não gostei de ver foi, logo após minha chegada, dois elementos com o rosto quase todo coberto, com boné enterrado quase tapando a sobrancelha, e lenços escondendo do nariz pra baixo.
Em seguida localizei minha amiga Prsni Nascimento, que me convidou para criar o cartaz que ela levaria na passeata. Aproveitei um verso do samba "Apesar de Você", de Chico Buarque, e escrevi Apesar de VC amanhã há de ser outro dia, com o 'VC' bem destacado no centro da folha. Mais gente foi chegando, alguns já ocupavam o leito da avenida FAB, fechada já para o trânsito, como boa parte do Centro àquela hora, e em torno de 17h15 iniciou-se a caminhada histórica. Saímos pela av. FAB na direção do Rio Amazonas, dobrando à direita na rua Cândido Mendes, onde houve o primeiro momento de relativa tensão. Na esquina (melhor dizendo, ocupando o lado inteiro da quadra da Cândido Mendes entre FAB e Coriolano Jucá), fica a residência oficial do governador do Estado, Camilo Capiberibe. Guardas da segurança da casa ficaram junto ao muro, ouvindo palavras de ordem dirigidas ao governador, algumas bastante chulas, outras cobrando seu maior empenho para com a saúde e a educação no Amapá.
Além de Camilo e do deputado Marcos Feliciano, o senador José Sarney, maranhense mas eleito pelo Amapá, e a presidente Dilma Rousseff foram dois alvos preferenciais dos manifestantes, tanto em cartazes quanto em palavras de ordem. Importante: quando falo em palavras de ordem, me refiro ao que eu podia acompanhar de onde estava, já que na posição em que nos encontrávamos não podíamos ver nem o começo nem o final da multidão (que, acredito, foi crescendo à medida em que a marcha avançava). Eu não tinha a menor ideia de que fecharíamos a marcha com 25 mil pessoas - número oficial, fornecido pela Polícia Militar. E absolutamente espantoso, semelhante ao de algumas das manifestações recentes em São Paulo, por exemplo. E S. Paulo, como é sabido, tem uma população muito maior do que Macapá. Para ficar bem claro: como Macapá tem 415 mil habitantes, segundo estimativa do IBGE em 2012, isso significa que 6 em cada 100 habitantes de Macapá participaram do ato plural! Eu não falei que era histórico?
Mas, enfim, falava eu das palavras de ordem. Elas não eram proferidas o tempo todo, volta e meia alguém puxava o coro de Vem pra rua!, em especial quando se passava por prédios onde os moradores nos assistiam da janela, uns eufóricos, outros atônitos. Outras preferidas foram o Fora Sarney e xingamentos chulos a governantes locais e nacionais. Várias vezes alguém puxou o "Hino Nacional", mas fora isso pouco se cantou. Predominavam na "trilha sonora" da tarde os apitos (quase o tempo todo), algumas vuvuzelas (aquelas cornetas da Copa de 2010) e, infelizmente, um barulho constante de "estalinhos", bombinhas usadas pra comemorar o São João. Eventualmente, alguém ainda soltava rojão, o que além de barulhento é perigoso. É bom ressaltar que não havia carro de som (que aqui em Macapá, nessa translação de sentido tão brasileira, é chamado de trio elétrico), algo comum nestas ocasiões.
Da Cândido Mendes, dobramos novamente à direita na Padre Júlio, que concentra maior número de lojas. Boa parte delas estava fechada, com os funcionários na frente acompanhando a passeata. Alguns acenavam e batiam palmas à nossa passagem, vibrando com nossos cartazes que fustigavam figuras da política, além de pedir melhoria no transporte, saúde e educação e condenando a corrupção, a PEC 37 e os gastos excessivos com as obras da Copa do Mundo - fora um protesto bem-humorado pedindo a redução no preço do açaí...
Até o Ministério Público estava protestando!
Nem no ponto mais alto do caminho - a subida da Padre Júlio, quase na esquina da Leopoldo Machado, onde dobramos novamente à direita - era possível ver o final da marcha; imagino que então havíamos atingido já o número de 25 mil participantes. Todos andando, cantando, carregando seus cartazes, na mais perfeita ordem e paz. Afora as bombinhas que não paravam nunca, o que me incomodava um pouco era não saber qual o caminho exato iríamos seguir, embora acreditasse que voltaríamos à praça. Também não gostei muito de ver aqui e ali pelo caminho pequenas fogueirinhas. Numa delas, numa esquina, se estava queimando um boneco, como fosse um Judas malhado em Sábado de Aleluia, sem que fosse possível identificar quem era o destinatário da fúria.
Ali na Leopoldo, paramos um pouco para comprar água e biscoitos (o sol ainda estava forte, e a Prsni não tinha almoçado). Demoramos um pouco para ser atendidos, pois uma manifestante, que saíra para a marcha com seu scarpin, devia estar com os pés doendo e decidira comprar um chinelo de dedo. Aliás, os figurinos variados na passeata dariam um capítulo à parte - tinha desde estudantes com uniforme, jovens descolados, até patricinhas prontas para desfilar numa passarela (e muita, muita gente com listrinhas verde e amarela em ambos os lados do rosto, havia quem estivesse pintando os outros em plena marcha). Os raros mercadinhos (chamados em Macapá de mini box) abertos atendiam por uma grade, talvez temerosos de ver tanta gente assim junta. Nesse mini box foi o único momento que vi alguém da passeata preocupado com o jogo, perguntando o resultado (o Brasil enfrentara o México, em partida válida pela famigerada Copa das Confederações, o jogo começando às 16h, horário de nossa concentração na praça). O dono do mini box informou que o Brasil ganhara por 2x0.
Terminado nosso lanche, voltamos à marcha - na verdade, acontecera só um espaçamento, o bloco de pessoas foi ficando um pouco menos compacto, mas em momento algum deixou de passar gente por nós. Também notei que os apitos se concentravam mais na parte da frente da marcha, conforme avançamos voltamos a ouvi-los com força.
Já na esquina com a av. FAB, onde dobramos novamente à direita para retornar à praça, algumas pessoas se manifestaram em frente à Assembléia Legislativa. Havia policiamento junto ao prédio, mas não vi incidente algum nesse momento. Mais adiante, em frente à Prefeitura Municipal, foi o único ponto onde vi policiais militares em meio à marcha (certamente eles já estavam ali e nós é que passamos por eles), além de um furgão da PM estacionado no leito da rua. Não vi ninguém ser abordado nem se excedendo, afora os esperados refrões chulos.
Perto de 18h30, chegamos de volta à praça da Bandeira. Aí foi possível ter a dimensão do mar de gente, pois não cabiam mais todos na praça, ocupávamos o leito da Av. Fab e todas as calçadas vizinhas. Foi talvez um dos momentos mais felizes da tarde, pois foi a hora em que se reencontraram amigos, colegas, parentes, amores, que se sabiam presentes na mesma marcha, mas separados talvez por uma distância de milhares de pessoas. Eu cheguei a aguardar algum comunicado de nova marcha, alguma reunião, mas como não viesse nada nesse sentido, comecei a pensar por onde poderia sair da praça, já que o avanço pela av. FAB se mostrava impossível, pois não só seu leito seguia ocupado pela multidão, como à frente desta ainda se ouvia, e infelizmente cada vez mais forte, as tais bombinhas de S. João. Foi aí que encontrei um grupo de amigos, e ficamos conversando até que...
...até que a permanência na praça se mostrou impossível. Não tinha como a gente ver, mas tudo indica que foi nesse momento (perto de 19h) que deva ter ocorrido a tentativa de invasão ao Palácio do Setentrião, pois além do barulho das bombinhas começamos a ouvir barulhos de bombas mais fortes, gente correndo na nossa direção (ou melhor, na da Eliezer Levy) e sentimos a ardência dos gases de pimenta liberados pelas bombas de gás lacrimogêneo usadas pela PM.
Senti de imediato me arderem os olhos, o nariz e a garganta, com uma breve sensação de sufocamento e formigamento. Instintivamente, puxei a gola da camiseta e a pus sobre o nariz, de forma a proteger nariz e boca, enquanto corria, segurando o braço de uma amiga do grupo, para evitar que nos perdêssemos. Paramos na esquina da Eliezer com Iracema Carvão Nunes, junto ao prédio da Receita Federal. Uma caminhonete da PM estava próxima de nós. Seguimos ouvindo estouros (segundo relatos que ouvi depois, nessa altura alguns policiais já estavam usando balas de borracha, mas de onde estávamos não víamos nem ouvíamos isto). Uma menina do nosso grupo se perdera e ninguém conseguia localizá-la, nem pelo celular. Já escurecera, o que não melhorava em nada a situação. Novos estouros, mais gente correndo, e acabei optando por sair dali, enquanto parte do grupo ficou. Aí encontrei minha amiga Ramona Gemaque, que me falou que procurava uma amiga dela que estava perto da escola Guanabara, duas quadras adiante, e fomos pra lá, não sem antes sentir o efeito de mais gases de pimenta.
Ramona encontrou duas amigas na frente de uma lancheria na Presidente Vargas, perto da esquina com a Eliezer Levy. Uma delas não estava se sentindo bem (havia sido atendida com problemas cardíacos na véspera); enquanto Ramona comprava água pra amiga, fui ver uma movimentação que me chamara a atenção na esquina, na faixa de segurança em frente ao campus da UEPA.
Manifestantes sentaram-se no leito da Presidente Vargas, em cima da faixa, de modo a impedir o trânsito. Apenas motos conseguiam passar, pelas laterais. Quando uma kombi da BPTrans chegou, os manifestantes levantaram e ficaram andando continuamente pela faixa, indo e vindo, de forma a seguir impedindo o fluxo de carros (bloqueio cujo objetivo até agora confesso que não entendi). Seis policiais desceram da kombi e tentaram demover os manifestantes, sem sucesso. Passados alguns minutos, os policiais desistiram e os manifestantes abriram uma brecha no bloqueio para a kombi passar. Os carros bloqueados reagiram esportivamente à situação, sem buzinar nem forçar a passagem. Em dado momento, buscou-se bloquear a passagem também pela Eliezer. Mas aí eu e Ramona já saíamos dali, para encontrar a Prsni, que estava com a mãe dela no começo da Duque de Caxias. Ramona me deixou ali e logo voltou para cuidar da amiga cardíaca.
Prsni, sua mãe e eu seguimos ouvindo explosões e sentindo gás de pimenta (eu já pela terceira vez). A mãe dela conseguiu falar com o irmão de Prnsi, que seguira com um grupo para a Assembléia. A essa altura, a multidão já se dispersara da praça, que vivia um cenário de guerra. Preferimos sair dali e elas me deram uma carona até em casa.
Quando estávamos numa loja perto da rua Tiradentes, no centro, ouvimos outra explosão, bem próxima, e (pela quarta vez) o nefando gás de pimenta. O que muito nos admirou, pois estávamos já a várias quadras da praça e eram mais de 20h. Dali a pouco, com a situação parecendo normal nas imediações, voltei pra casa.
Saí pouco depois, para jantar. Fui perto do Arraiá da Beira-Rio, junto à Fortaleza de São José, o que significa que passei duas vezes pelo Teatro das Bacabeiras, onde tudo estava normal até passado de 22h (pelo visto, houvera um espetáculo ou uma formatura de turma de dança infantil, pois várias meninas com roupa de balé saíam com seus papis e mamis).
Passei por duas paradas de ônibus, na Sâo José e na Tiradentes. Em nenhuma havia ônibus passando, e as pessoas não tinham informação nenhuma. As pessoas da Tiradentes comentaram comigo que o último coletivo que havia passado fôra às 21h - uma e hora e meia antes!
Também estive no Largo dos Inocentes, mais conhecido como Formigueiro. Um conhecido meu relatou que entrara em confronto, na praça, com um policial que iria atirar num grupo desarmado, ele se pôs na frente e levou uma bala de borracha na perna. Também me contou que a polícia já estivera duas vezes naquela noite no Formigueiro, jogando bombas de gás e atirando balas de borracha nas pessoas que estavam ali, lugar onde habitualmente a juventude macapaense se reúne à noite para conversar e beber numa boa, como estava acontecendo antes das intervenções da polícia, e voltou a acontecer depois disso. Reparei que alguém pichara a Igreja de São José, o prédio mais antigo da cidade (foi inagurado em 1761) escrevendo em sua parede "Abaixo corrupção".
Eram umas 22h30 passadas quando voltei de vez pra casa. Pelo Facebook, fui sabendo dos ataques a prédios públicos e privados como o Centro Cultural Azevedo Picanço, a Caixa Econômica Federal, a Ótica Diniz e - o que me espantou - o Teatro das Bacabeiras. Como falei, passei antes por ali e não tinha nada de anormal. (Mas hoje, quando estive lá no MIS, mostraram-me as marcas no vidro por onde os vândalos tentaram forçar a entrada, e na calçada pedras retiradas do pavimento.)
Também fui começando a ver a repercussão do evento. Como era de esperar, e é de lamentar, a 'grande mídia' procurou dar muito mais destaque ao conflito e aos atos de vandalismo do que à manifestação pacífica e histórica que o antecedeu. Uma pena. Espero com o meu relato ter ajudado a situar melhor as coisas para quem não esteve presente. Na verdade, foram duas coisas: uma marcha pacífica que reuniu 25 mil pessoas, e depois uma sequência de atos de vandalismo praticados por uma minoria, ao que a PM respondeu, de um modo que acabou dispersando a todos, pacíficos e vândalos.
O grupo que organizou o ato de ontem agendou reunião com o prefeito Clécio Luís para a noite de hoje, e fará na sexta reunião para avaliar o ato de quarta. Dali pode sair a convocação de novo ato. Outro grupo, sem ligação com o primeiro, encontra-se agora no começo desta noite na praça da Bandeira, com outra manifestação.
O meu balanço do evento, da marcha em si, é amplamente positivo. Deploro, é claro, o vandalismo, e tenho a certeza que os organizadores do movimento no Amapá saberão buscar soluções para evitar a presença de pessoas que não pensam na construção de uma sociedade melhor, e sim apenas querem se aproveitar da multidão para cometer seus atos ilícitos.
Continuemos indo pra rua, Brasil, em ordem e em paz. A mudança recém começou!
- Making-off do texto - Publicado no blog Jornalismo Cultural em pleno calor das chamadas Jornadas de Junho, em 20.6.13.
- Participei ainda de outra passeata, exatamente uma semana depois, em 26.6. Porém ao longo da semana, e nos dias seguintes, percebi que o movimento estava tomando um rumo que não me agradava, só voltando a tomar parte em manifestações em 2017.
- O post original contém outras fotos, de Leandro Cavalcante, Blog Fora de Rota e Maksuel Martins Souza.
- Na fan page FabioGomes FotoCinema do Facebook, há um álbum com outras fotos que fiz na concentração da passeata.
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