A propósito de Manoel de Barros

* Publicado no blog Jornalismo Cultural em 13.11.14. 


Hoje, depois de quase 98 anos por aqui, o poeta Manoel de Barros nos deixou, e foi para o lugar que acreditamos ser melhor. 

A primeira vez que ouvi falar do poeta foi através de um curta-metragem, Caramujo-Flor, exibido creio que em 1988 na Biblioteca Pública Castro Alves, em Bento Gonçalves, que tinha sessões regulares de cinema brasileiro, e que foi fundamental para minha formação intelectual :)

Afora um que outro poema seu lido depois em alguma antologia, meu reencontro definitivo com Manoel se deu através do filme Língua de Brincar, exibido no CineEsquemaNovo 2007 – Festival de Cinema de Porto Alegre, que nesse ano teve entre os apoiadores meu site Brasileirinho. No evento eu também fui um dos alunos da Oficina de Crítica Cinematográfica ministrada pelo crítico do site Contracampo Ruy Gardnier. Ruy estava no júri oficial do festival, e a nós oficinandos coube a tarefa de constituirmos o júri que apontou o melhor longa do certame - que recebeu o nome pomposo de Prêmo da Nova Crítica (moral, hein?). Concorriam com LínguaConceição – Autor Bom é Autor Morto, de Daniel Caetano, André Sampaio, Guilherme Sarmiento, Samantha Ribeiro e Cynthia Sims (RJ); O Quadrado de Joana, de Tiago Mata Machado (MG); e Selva do Meu Desejo, de Roberto Athayde (RJ). Este último teve a maioria dos votos de meus colegas (eu obviamente votei em Língua). 

Ano passado, a convite de uma amiga do Mato Grosso do Sul, fui passar o carnaval em Corumbá, e antes e depois de ir pra fronteira fiquei alguns dias em Campo Grande, onde já havia uma avenida Manoel de Barros (o que me fez até perguntar para a amiga se Manoel ainda vivia. Sim, ela confirmou). Ao longo de toda a extensão dessa avenida, que atravessa o Parque dos Poderes, diversas placas reproduzem trechos de poemas de Manoel. O melhor de tudo é que isso foi feito ainda com o homenageado vivo, dando as flores em vida, como pediam Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito no samba "Quando Eu me Chamar Saudade". 

O texto que lemos a seguir é a crítica do filme Língua de Brincar, que escrevi durante a citada oficina do CineEsquemaNovo 2007. 


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LÍNGUA DE BRINCAR: 
O RETRATO DO CINEMA ENQUANTO POESIA



O que dizer sobre Língua de Brincar? Que é um documentário que, ao retratar o poeta Manoel de Barros, foge do convencional? Foge, por certo, embora essa "fuga" de um tipo de documentário-com-locutor-que-comece-dizendo: "Fulano de tal nasceu na cidade tal na data tal" esteja quase se tornando uma convenção também. Considero que os diretores Lúcia Castelo Branco e Gabriel Sanna acertaram em cheio quando foram além e buscaram captar em seu filme o que seria um retrato do cinema enquanto poesia.

Sei de pelo menos um filme anterior sobre Manoel de Barros que teve o mesmo propósito de fuga do convencional: Caramujo-Flor, de Joel Pizzini. Nesse curta de 1988, enquanto víamos belas imagens do Pantanal e de Campo Grande, ouvíamos poemas de Manoel na voz de artistas como Ney Matogrosso e Aracy Balabanian, além de um depoimento do acadêmico Antônio Houaiss situando a obra do poeta no panorama da literatura - e a fala descompromissada de amigos como o jornalista Fausto Wolff, contando como é bom bater um papo com Manoel.

Língua de Brincar avança na linha aberta por Caramujo-Flor: mostra paisagens do Pantanal, tem poemas lidos por artistas, como Maria Bethânia, a opinião de especialistas como o português João Barrento, e a fala dos amigos - a lista aqui aumenta: além de Wolff, temos o ator Orã Figueiredo, o bibliófilo José Mindlin e outros contando suas conversas memoráveis com Manoel. E, felizmente, depois de ter visto Língua de Brincar eu não preciso mais ficar imaginando como seria bom bater um papo com Manoel: tenho a certeza disso ao ver o poeta conversar com a equipe de filmagem em várias cenas. 

Sim, um dos achados do filme é incorporar à narrativa seu próprio making-off. Isto ocorre, por exemplo, nos depoimentos: ao invés do clássico enquadramento fixo em que o depoente parece estar falando sozinho (um padrão no estilo "documentário convencional"), mostra-se o contexto em que o depoimento é captado. Sob esse aspecto, o grande momento do filme é a hora em que Orã Figueiredo fala sobre sua atuação numa peça feita a partir dos poemas de Manoel. Enquanto o ator fala, a câmera brinca com suas múltiplas imagens exibidas nos vários espelhos do camarim do teatro, mudando o ângulo de observação diversas vezes. Foi um dos momentos em que lembrei desses versos do poema "Uma Didática da Invenção": Repetir repetir - até ficar diferente/ Repetir é um dom do estilo.

A idéia da repetição como dom do estilo foi estendida à estrutura de Língua de Brincar, o que tanto ajuda quanto atrapalha. Atrapalha por exemplo na seqüência em que, enquanto vemos uma árvore em preto-e-branco, uma voz feminina repete diversos poemas curtos definindo pedra, homem, borboleta etc., em português e em espanhol (para piorar, esta seqüência, é reapresentada na íntegra após alguns minutos!). A repetição ajuda quando se varia a forma de fazer os poemas voltar à cena (por exemplo, o poema lido por Bethânia, "Ruína", já fora lido em off noutra passagem); ajuda também quando depoimentos longos são divididos em várias intervenções curtas, de modo a não se tornarem enfadonhos. Um cuidado que infelizmente não foi estendido à cena que encerra Língua de Brincar: a da cartomante que vê no tarô a sorte do filme (sic). 

Afora certa coerência com a idéia de incorporar o making-off à estrutura, este final é praticamente uma negação do caráter da obra. Além de a cena nada acrescentar de informativo ou de poético em seus quase sete minutos de duração, ela tem o demérito de tirar o espectador do enlevo a que o levara a cena anterior e que me parecia o final mais adequado a um filme sobre Manoel de Barros: enquanto ouvíamos uma locutora ler os créditos finais do filme, víamos as imagens de coisas ou paisagens identificáveis dando lugar a massas de cores atravessadas a intervalos por linhas luminosas (difícil colocar em palavras isso, desculpem). Confesso que logo de início estranhei, mas em seguida embarquei na proposta e deixei as cores e linhas me levarem ao Pantanal. Vi ali árvores crescendo, animais correndo ou nadando - a vida acontecendo em sua plenitude, enfim. É como se, ao invés da visão de diferentes posições ocupadas por um ser em movimento, eu pudesse, pela vez primeira, ver capturada numa tela de cinema a essência do movimento em si. Tamanha beleza remeteu-me a uma frase do pintor Carlos Vergara: O que está na tela é um pretexto para catalizar áreas sutis no espectador.





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